Comprei um cinema
Meu jeitinho de ajudar na sobrevivência dos cinemas de rua.
A primeira vez que fui levado ao cinema foi em um cinema de rua para assistir a um filme dos Trapalhões com participação especial da Angélica chamado Os Trapalhões na Terra dos Monstros (1989), como contei aqui há um tempo. Eu não tenho uma memória viva do local, apenas fragmentos. Lembro de uma tela grande, de termos sentado na frente em cadeiras com encosto de madeira, e de meus primos ao lado. Acho que estávamos em cinco ou seis. Fui atrás de uma foto do local e encontrei. Tratava-se de um espaço aparentemente pequeno, em uma esquina, mais especificamente na região da Penha, zona leste de São Paulo. Para quem não sabe, era o ponto de partida de um antigo caminho percorrido por tropeiros e viajantes em uma longa e difícil rota entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Curiosamente, depois dessa experiência, só voltei a uma sala de cinema em 1999. Não mais um charmoso cinema de rua, mas o suprassumo das salas tecnicamente equipadas da época, o Cinemark, que trazia a inovação do Dolby Digital 5.1. Foi ali que ouvi como nunca antes o som dos microvidros se quebrando na cena da batida do helicóptero em um prédio espelhado no “polêmico” Matrix (1999), um pouquinho depois a técnica do bullet time vai ser usada à exaustão na publicidade, nos mais diversos tipos de comercial. O multiplex ficava dentro do shopping Aricanduva, na época o maior da América Latina, com seus 257 mil m² e mais de 500 lojas, a menos de 500 metros da escola em que eu estudava.
Depois de 1999, voltei a frequentar o cinema com mais regularidade. Como eu já trabalhava, ficava mais fácil. Para um leitor voraz de histórias em quadrinhos, lançamentos como X-Men (2000) no ano seguinte e tantos outros filmes de super-heróis ajudaram a transformar algo que era um evento em um ambiente familiar.
Com o passar do tempo, conheci outras salas e filmes até voltar aos cinemas de rua, vivendo no quadrilátero, Cine Belas Artes, Cine Sesc, Cine Itaú Unibanco e Cine Livraria Cultura. O que eu mais gostava era o Cine Sesc, com suas broinhas de milho, café e, o melhor de tudo, sessões gratuitas e festivais como o Indie Festival.
Sempre que penso no que faria se fosse milhardário, uma das ideias é ter meu próprio cinema. Volta e meia olho para alguns imóveis e penso que ali daria um ótimo cinema de rua. Toda vez que passo em frente ao Cine Sala me pergunto e se ele fosse meu?
No meu cinema haveria sessões gratuitas para escolas públicas. Um grande ônibus buscaria os alunos para assistirem aos filmes e comerem pipoca, tudo de graça, de preferência com a presença do diretor para comentar no fim da sessão.
Outro detalhe seria a realização de eventos culturais. Com o passar do tempo, fiz inúmeros amigos músicos, escritores e principalmente ilustradores, todos muito talentosos, fico pensando na quantidade de exposição que poderia armar lá dentro. Às vezes penso sozinho o quanto seria incrível ter um sarau de poesia ou até um duelo de MCs seguido da exibição de 8 Mile (2002), com comentários e perguntas da plateia para o Emicida. Seria bacana demais.
Há muitos anos tive a oportunidade de morar fora, mais especificamente em Londres. Depois de um tempo na cidade, entrei em um cinema de rua chamado Prince Charles Cinema. Ele tinha um grande letreiro com chamadas impactantes e divertidas de filmes clássicos e blockbusters.

Naquela época, em 2014, havia em frente a ele uma pequena estátua de bronze de Charles Chaplin, na figura do vagabundo de chapéu e bengala. Ficava do outro lado da rua, de frente para o cinema. Por curiosidade, esse foi um dos primeiros lugares da Europa a exibir Cães de Aluguel (1992), de Tarantino. Um evento em nome do diretor acontecia anualmente, chamado Tarantino Tuesdays, quando durante dois meses, às terças-feiras, era exibido um filme dele em 35mm.


O que eu mais gostava nesse cinema, além da sala principal que ficava em uma espécie de porão com bar, eram as sessões chamadas All Nighters, semelhantes aos Noitões do Cine Belas Artes.


Vi vários All Nighters, mas o meu favorito foi o Martial Arts VHS All-Nighter. Logo na entrada, o público recebia um pacote de pipoca e um hashi, referência à cena em que Bruce Leroy assiste a um filme no cinema em The Last Dragon (1985) e come pipoca usando hashis.
Além desse filme, havia trailers de produções obscuras de artes marciais. A sensação de fazer parte daquilo era incrível, com todos rindo e se divertindo juntos.


O foco do meu cinema seria transformá-lo em uma grande comunidade, com um clima acolhedor para quem chega. Por muito tempo marquei encontros do Tinder no cinema, assim, se o encontro fosse ruim, pelo menos eu teria visto um filme. É esse tipo de comunidade que imagino, um lugar onde as pessoas se conheçam, se casem, formem famílias e vivam histórias ali, entre amigos, filhos e amantes. Todo mundo junto e misturado.
Cinemas de rua lutam para sobreviver. É um negócio cheio de altos e baixos, e quem o mantém merece ser premiado, porque fácil não deve ser. Transformar esse tipo de negócio em uma comunidade é o princípio básico, na minha visão. Criar cartões de fidelidade, oferecer experiências fora das telas e ocupar espaços no digital talvez sejam caminhos para dar sobrevida ao negócio, especialmente fora das temporadas mais movimentadas. Ter além dos filmes de estréia, outros mecanismos para se conectar com o público.
Vida longa aos cinemas de rua. E podem ter certeza de que, no dia em que eu realmente ficar milhardário, vocês vão saber, porque será o dia em que eu anunciar que comprei um cinema.




